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História de mar

Foto do escritor: O Recife AssombradoO Recife Assombrado

Que segredos e monstruosidades o mar esconde? André de Sena nos dá a pista.

Quando criança, descobri que de qualquer lugar da cidade poderia ver o mar. Aos poucos, ele passou a olhar mais para mim do que eu a ele, gigantesca hidra cujos tentáculos de rios dominam a cidade e se espraiam pelo interior das residências, e fui me incomodando com isso, até ser envolvida pela gaze escura do medo. Mas como o pensamento fixo tem seu fascínio e a hora da morte talvez nos pareça a mais deslumbrante, volto sempre os olhos em sua direção, e por isso não abandono esta cidade.


Em sonhos ruins, me faz erguer da cama aos saltos, tateando a treva nas paredes. Certa vez, observei toda a cidade ser submersa, única sobrevivente após escalar uma das torres da igreja de Santo Antônio, que parecia ter a altura centuplicada. Com uma facilidade assombrosa, sinto os entalhes barrocos servirem-me de escadas, atraindo-me como se ímãs tivessem sido postos em sua estrutura e eu mesma contivesse algum princípio metálico. Mas a estrutura maciça, que parece ser a última construção humana de pé sob o céu, se põe a balançar e afundar… Não é um balançar levemente percebido; lembra, antes, o oscilar de um pêndulo gigante que vai de um polo a outro em poucos segundos. Não sei se é o mar que, misturado à noite, aumenta sua inclemente sanha e sobe, ou se é a igreja que vai sendo minada, sedimento a sedimento… por fim, somos tragados. Prestes a me afogar, consigo me agarrar a uma espécie de balsa mas é com reiterado horror que descubro ser esta um dos pesados maciços do frontão barroco da igreja, com suas linhas sinuosas e volutas entrelaçadas, que estranhamente adquiriu a leveza da madeira e se pôs a vagar por entre as ondas. Abrigada nessa concha flutuante, presa da angústia dos sobreviventes, eu contemplo a formação de maciços aquáticos gigantes à distância, no horizonte noturno, e os cadáveres de pessoas e animais. Entre o vai e vem de uma sinfonia de montanhas e abismos, tento me afastar do cume de alguns prédios mais altos que ainda teimam em sair da água, enquanto uma lua cadavérica parece velar a morte da natureza. Nesse momento, sempre termino por acordar em desespero.


Há outros sonhos, de igual forma, recorrentes e assustadores. Uma estranha visão de cidades antigas e clássicas, templos de mármore que servem de âncoras para galeões que descansam mansamente no mar, atracados às suas colunas por pesadas cordas, sugerindo contraditoriamente ao espírito uma sensação de extrema inquietude. Observo o movimento intenso, mas tranquilo, desses portos luxuriantes e as ondas não são ameaçadoras; antes, borrifam os degraus de mármore a brincar como crianças. Mas um sentimento opressor toma vulto, vindo de não sei onde, talvez daquele próprio lugar que sinto já ter realmente existido, e começo a desconfiar que o mar vai invadi-lo a qualquer momento. Aos gritos, tento avisar às pessoas do perigo iminente, mas elas parecem não me compreender e prosseguem calmamente em seus afazeres. O mar, denso de uma matéria abjeta formada pelo rendilhado de milhões de esqueletos, parece caçoar de mim e de minhas tentativas infelizes. Tudo se encerra quando, ao acordar, banhada em suor e lágrimas, tenho a impressão de ter sido tragada de volta à vida, natimorta, de um naufrágio.


Me parece que a substância do mar é a mesma da alma dos mortos. Qual a razão de sua existência? Não veem quantas figuras assustadoramente infantis procedem de si a cada minuto, sopradas em direção às cidades, como a zombar de nós? E pensar que ainda há pessoas que se encantam com os formatos das nuvens…


Devo confessar que talvez esses sonhos nefastos venham de uma época em que eu era criança e presenciei a uma cena apavorante, estopim de uma maldição semelhante a das mariposas, condenadas a concluir a existência justamente através de seu maior objeto de fascínio.


Alguns sugerirão tratar-se de mais um sonho, mas o que eu e alguns amigos presenciamos em uma determinada tarde do passado está longe de pertencer aos planos oníricos.


Foi em frente ao mar que tudo aconteceu. Eu era jovem e não possuía este desespero mudo que me domina diante de sua visão. Semelhante às centenas de recifenses que todos os dias se postam tranquilamente diante das ondas, ainda me aproximava dele e não lhe havia descoberto a monstruosidade. Jogávamos uma partida de vôlei na praia e eu corria, embalada pelo vento, golpeando a bola em meio aos risos, sentindo a agradável sensação de pisar na areia morna, quando, ao final da tarde, caiu uma leve garoa, que fez com que a maioria das pessoas deixasse a praia. Não quisemos interromper o jogo; continuamos a partida até as sete ou oito horas, quando as primeiras pessoas começaram a retornar às suas casas. A chuva havia cessado, mas algumas nuvens negras se postaram na linha do horizonte, de onde saíam fortes descargas elétricas que iluminavam as lonjuras do deserto líquido.


Foi S., um colega, quem o viu primeiro. “Qual o problema? Não vai mais jogar?”, gritei-lhe, ao notar que saía constantemente da partida para observar algo no mar. “Vejam aquilo… um navio esquisito em alto mar…”, foi sua resposta, e todos olharam para a direção indicada. Realmente vimos um barco cujas dimensões eram difíceis de definir por conta da escuridão, mas parecia ser muito alto a cada nova cintilação de raios, de um negror que conseguia se destacar da própria noite, treva separando-se lentamente de outra, ganhando vulto entre as ondas e os relâmpagos.


Havia algo de diferente naquele barco, que mais se assemelhava a uma grande arca fechada. Devido a oscilação dos fenômenos climáticos que acontecia ao seu redor (ou emanaria dele?), não era possível afirmar se se encontrava longe ou perto. Não parecerá estranho, pois, o fato de que a partida foi suspensa e decidimos nos sentar na areia, a estranhar aquela visão. Uns diziam que era um simples pedaço de madeira em forma de baú, que flutuava a poucos metros de onde estávamos, provavelmente restos de um barco ou tronco de árvore; já outro, afirmava ser uma grande arca, semelhante a que vira desenhada nas páginas da Bíblia, por ocasião do dilúvio universal, quando Noé reuniu um exemplar de cada animal vivo sobre a terra. Vez ou outra alguém sussurrava que era apenas uma onda a se formar no horizonte, ou a sombra de uma grande nuvem escura. Ainda não conseguíramos definir se se tratava ou não de um barco, quando notamos que aos poucos suas dimensões iam aumentando, ou seja, o que quer que fosse, se aproximava da praia.


Ficamos hipnotizados pelo segredo daquela imagem. Seu fascínio era tal que em nenhum momento sentimos algo próximo do temor. Quando demos por nós, já apresentava toda a vasta silhueta perfilada à luz das estrelas e, postado a pouca distância da costa, parecia ir em direção aos arrecifes que lhe servem de naturais sentinelas, correndo o risco de se despedaçar, mas sua possante estatura era indiferente aos perigos. Foi então que, em certo momento, um horror inexprimível tomou conta de todos, quando notamos que a nave alta e escura já havia ultrapassado a linha de arrecifes e se encontrava a poucos metros de onde nós próprios estávamos. Tinha realmente as dimensões e a forma de uma imensa arca negra, mas não era possível ver qualquer coisa além disso. Nenhuma embarcação poderia executar tais manobras sem ter o casco seriamente atingido, a menos que flutuasse sobre as águas. E não havia encalhado, estando já em águas rasas, que mal dariam para cobrir uma pessoa. Parecia querer chegar até a areia e vir em nossa direção, quando começamos a gritar e a correr em louco arrebatamento, chocando-nos uns contra os outros.


Algum tempo depois, eu voltava à minha residência, com os cabelos em desalinho e a fisionomia alterada; meus pais julgaram-me vítima ou testemunha de um crime. Não estavam errados: fui a escolhida para carregar, até a morte, o segredo do mar e a certeza de suas monstruosidades.



 

Autor: André de Sena. Ilustrador: Celso Vinícius Sales.


André de Sena é poeta, músico e escritor, com mestrado e doutorado em Literatura. É professor do Depto. de Letras da UFPE e também já lançou livros de crítica literária, a exemplo de Visões do Ultrarromantismo: melancolia literária e modo ultrarromântico (Ed. UFPE, 2011). É líder do grupo Belvidera – Núcleo de Estudos Oitocentistas da UFPE, que publica livros de teoria e ficção e organiza anualmente o Congresso de Literatura Fantástica de Pernambuco.


Celso Vinícius Sales é arquiteto formado pela UFPE em 2006. Obteve diversos prêmios nacionais em concursos de projeto de arquitetura. Em 2009, teve breve envolvimento com cinema, realizando o curta-metragem “16° Andar”, o qual foi exibido em alguns festivais do Estado. Como ilustrador, merece destaque seu trabalho para o projeto ”Um Cartaz Para São Paulo”, em 2012, e as ilustrações da série “Cidades Reais e Imaginárias”, publicadas semanalmente no site de arquitetura “Vitruvius”.


 

Ilustrações e textos cedidos para a publicação no site O Recife Assombrado são de propriedade de seus respectivos autores. Está terminantemente proibida a reprodução total ou parcial dos referidos trabalhos sem a devida autorização.

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